Arquivo mensal: julho 2009

Reflexões fora do armário


Depois de quase um mês sem postar, hoje venho fazer uma reflexão bem particular. Não trago nada de muita atualidade. Com as merecidas férias (acho que nunca as mereci tanto, pois o semestre foi soberbamente pesado), resolvi oxigenar o perfil do orkut, investir mais no twitter, conversar mais com os contatos do MSN, sair mais para as festas, enfim, dedicar-me um pouco ao ócio produtivo – e prazeroso.
Foi revisitando algumas comunidades do orkut nas quais debati certos temas, no ano passado e no começo deste, que decidi fazer esta postagem. Ela reflete uma tentativa de rememoriar certas discussões em torno de um grande assunto ao qual dedico atenção há alguns anos.
Quando ingressei no orkut, no final de 2005, não o compreendia bem como uma rede social ao modo como se entende hoje. De cara, descobri comunidades cujas discussões me interessavam. Não eram os perfis (ou mais que isso, as pessoas por detrás deles) que me fascinavam, mas sim a possibilidade de troca, de diálogo, de enfrentamento também.

Ali vi crescer, positiva e negativamente, minha capacidade de ordenar argumentos, de contrapô-los, de contra-argumentar; de produzir uma retórica às vezes atraente, quase sempre cansativa; de ser admirado por alguns amigos e anônimos e odiado por alguns anônimos-conhecidos.

Seguramente, consegui extrair do orkut aquilo que se pode extrair de grandes livros, grandes teóricos. A partir das discussões em que, apaixonadamente, me envolvia naquela rede, fui atrás de centens de outras informações que pudessem dar sustento ao que eu pensava – e escrevia. Nesse tempo eram fartas as madrugadas dedicadas às pesquisas para os debates. Lia desde os artigos conhecidos do Scielo até sites que traduziam partes da bíblia para o grego e o latim (vulgar); de artigos publicados em revistas como a Science até trechos complicados de juristas tentando nos tornar palatável o insondável mundo do direito.

De tantas horas, madrugadas e postagens, recebi a companhia de grandes pessoas, ainda que não as conheça em carne e osso – mas os sentimentos, estes nem a fibra ótica retrai. Recebi também a perseguição sistemática de seres muito exóticos – alguns dotados de grande cultura e capacidade argumentativa, mas dedicados a um ideal tão triste que é o combate à existência alheia. Da diversidade (alheia).

Tudo isso porque estamos contaminados. Por passionalidades danosas. Por irracionalidades. Por culturas. Por pouca empatia. Não só eles (os maus). Não só aqueles (os criminosos). Todos nós, como esponjas num mar desconhecido: absorvendo sentimentos danosos, razões pouco convincentes, bens culturais pouco agregadores; também, felizmente, eliminando o que conseguimos identificar: tudo aquilo que a mente sã, o coração pulsante e o corpo vibrante sentem ser para o pior, para a dor, para a uniformidade.

Gosto muito da microfísica (a do Foucault também). Essa palavrinha mágica ativa todo um cosmos que são as nossas culturas. O ser, a gente, nós mesmos, ali no prato límpido dentro do micro-ondas, recebendo tudo e, como a esponja, reagindo na medida do possível (e do impossível de cada um). Nossas igrejas, nossos jornais, nossos pais, nossos colegas, nossos prédios, nossas ruas, nossos lixos, nossos alimentos, nossos televisores, nossas vozes, nossos ícones, nossos mitos, nossas escolas, nossos saberes, nossos monstros, nossa história, nossos antepassados, nossa cultura, nossos humanos. De micro em micro valor, razão e poder vamos sendo aquecidos nesse ‘micro-ondas pangeia’. Um pouco finca pé, outro pouco vai para o espaço.

Lentamente, vamos compondo um corpo e uma mente, com ou sem espírito. E nele e por ele somos o que somos íntima e secretamente. Mas gota a gota, vamos revelando, ainda que turvamente, um pouco desse ser e estar por meio de palavras, olhares, gestos, silêncios, idas e voltas, rompantes e passividades.

Desse caldeirão, minuto a minuto, vamos ativando as microidentidades que nos exigimos (e que nos são exigidas) para compor o corpo que vai a público. E, quem explica?, dia-a-dia vamos modelando certas escolhas que nos tornam a frente de batalha. Nossa batalha, batalha alheia, batalha vã, todas elas.

Assim nos tornamos o que aí está: militantes pela natureza, pelo dinheiro, pela diversidade, pela raça superior, pelo ecumênico, pelas deficiências, pela misoginia, pela tortura, pelo diálogo, pela morte alheia, pela comida, por… alguma coisa que está, genuinamente, incrustada nesse microbiocorpo.

E, quem explica?, todo dia não nos cansaçamos de encontrar o contraditório, o louvável, o condenável, o inexplicável e o messiânico; de procurar o primeiro valor, a ética sem detalhamentos necessários; a idealidade por excelência. Não encontramos uma boa resposta, claro.

Que microforças nos levam a decidir pelo mais difícil – e necessário? A decidir pelo mais fácil – e desolador? A escolher um lado – e não outro – e a pensar que só há dois? Não se pode viver, aqui nesta civilização, impunemente. Toda existência tem um preço. Tanto mais cara quanto mais complexa e desafiadora quiser ser.

Felizmente, houve uma Rosa Parks. Houve um Galileu. Houve um Milk. E há nós, todos nós. Cada um escolhendo um dos lados (são vários!) das trincheiras – por que elas existem não é são especular. E todo lado seduz a si mesmo e aos que tenta angariar com o discurso do bem, do melhor, do saudável, do humano – ecce homo. São todos movidos pelo bem, embora cada um identifique no outro o motor do mal. E nisso está toda nossa incompressão sobre nós mesmos.

De quatro anos de orkut, esta rede que me parece uma micropólis, um retrato do que há de melhor e pior no ‘mundo real’, aprendi que toda escolha e todo ser paga seu preço. Como marotamente disse Herbert Daniel sobre seu sotaque: não se nasce em Minas impunemente; penso que não se nasce nem se vive impunemente.

Por isso, como tantos outros (felizmente!), escolhi que não poderia, não deveria e não queria ser parte da colônia estrangeira de meu país (como dissera Proust). É por isso, talvez exaustivamente não é?, que todo dia penso em como sou feliz trilhando um caminho (abrindo-no por vezes em meio à ‘mata’ urbana) que me revela sincero, que me mostra como me sinto. Um caminho reto, com declives, tortuoso – mas sob o sol (também sob a chuva, bem sabemos) -, que me exige a constante exteriorização da dignidade preservada no ‘útero’ que é nosso corpo. É pela microidentidade exposta com orgulho que se pode refrear a macrohomogeneidade. É pelo orgulho, essa palavra simultaneamente perversa e do bem, que se pode refrear uma indignidade cultural alimentada por tantos microvalores.

Mais importante, reflito, é lembrar(-nos) que não há só o bem e só o mal. Mas há um caminho trilhado, todo dia, que nos leva ‘mais pela sombra do que pelas trevas’. Certos dias, certas ações, certos momentos escurecem um pouco mais. Mas a constância da sombra prazerosa nos dá a certeza de que escolhemos um bom caminho. Se difícil ou fácil, também não há absolutos para isso. Por isso a (auto) contemplação faz tão bem. É o check-up que a consciência nos pede e o sorisso expande ao mundo. Até por que sempre há tempo para retornar, contornar, emendar…

A todo instante vemos, nos olhares e nos gestos adestrados por uma cultura homericamente poderosa, uma vivência meio alegre; meio verdadeira; meio turva; vemos cotidianos meio tristonhos, meio sublimados nas esquinas e quinas discretas da pólis; vemos mãos e vozes erguidas, expondo uma microessência, sendo caladas; vemos vidas efêmeras sendo arrebatadas por artefatos letais de culturas pluralmente homogeneizadas; ‘vemos’ vozes bradando pela monocordia, pela monoexistência, pelo gozo único, pelo ‘grande irmão’ que nos quer réplicas de um ecce homo.

Não impunemente, cada um escolhe ao que cala e ao que grita. Eis-me: sim pela coexistência, pela diversidade, pela harmonia e pelo sobressalto; sim ao diferente – que me é um tanto quanto igual; e ao igual – que me é muito diferente; sim à empatia, à dor bem sentida, à alegria solitária e à coletiva; sim à felicidade que se faz genuína, descompromissada, fluida e orgásmica; sim às utopias… como esta de Saramago:

Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdadade, mas de superioridade sobre o outro. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância.

Não chegamos lá. Não creio que chegaremos.
Mas acho que queremos. Como nos canta a incrível Nina Simone,

♪ Here comes the sun, little darling
Here comes the sun, it’s all right

Sigo na exposição. Constante.
Abraços. =)

Ps.: as imagens são de autorias variadas, com destaque para as do Steve Walker. Escolhi estas porque as acho bonitas e representativas de muito o que disse.